Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.

Simone de Beauvoir

1. Conjuntura brasileira atual e o feminismo que queremos

A história das lutas sociais no Brasil é uma história da resistência negra, índia, feminista e popular. Essa afirmação é uma síntese de formulações estratégicas vitais para a Revolução Brasileira, compreendendo a complexidade das relações que estruturam a sociedade de classes no Brasil e apontando os sujeitos revolucionários capazes de derrubá-la. Retomar essas premissas nos parece fundamental para fundamentar em bases teóricas sólidas a recomposição política da Setorial de Mulheres do PSOL e orientar a intervenção da militância, especialmente das feministas psolistas, nos movimentos sociais.

Vivemos um momento rico e desafiador para a esquerda, em geral, e os feminismos, em particular. Desde o acirramento da crise econômica no Brasil, as medidas de arrocho têm as mulheres, mesmo sem explicitá-las, como seus principais alvos. Ainda em 2014, logo após as eleições, Dilma e Joaquim Levy anunciaram um ajuste fiscal cujo carro-chefe eram alterações e redução no valor dos benefícios às viúvas e no acesso ao auxílio defeso pelas pessoas que trabalham na coleta de marisco e na fabricação de instrumentos artesanais usados na atividade, esta realizada geralmente por mulheres. Na sequência do golpe de 2016, processo embalado por um coro misógino contra a presidenta eleita e contra as mulheres na política de forma geral, cuja síntese foi a fala do agora presidente Bolsonaro homenageando e referenciando o torturador Ustra como o “pavor” de Dilma Rousseff –, o governo de Temer aprovou a Emenda Constitucional nº 95 – a PEC do Fim do Mundo – que congela por 20 anos os recursos de todas as políticas sociais, em especial a Saúde e a Educação levando a um retrocesso nos direitos sociais jamais vividos, bem como propôs e aprovou uma terceirização irrestrita nos serviços públicos, modalidade que representa a institucionalização dos postos de trabalho mais precarizados, com menores salários, menos garantias trabalhistas e mais dificuldades de organização sindical. Somos 32% das terceirizadas, a maior parte no setor limpeza e manutenção, onde mais da metade das trabalhadoras são negras. Para o relator do projeto da Terceirização, Laercio Oliveira (PSD-SE), “ninguém faz limpeza melhor que mulher”, uma amostra do pensamento patriarcal e colonialista ainda vigente.

O mesmo governo golpista de Temer conduziu ainda um brutal desmonte da CLT, que entre outras atrocidades, permitia que grávidas e lactantes trabalhassem em locais insalubres (norma recentemente suspensa pelo STF), e joga instabilidade sobre conquistas como a PEC das Domésticas. As trabalhadoras domésticas veem seus direitos recém-conquistados se esvaindo, pois estão mais expostas aos abusos de empregadores. O trabalho doméstico remunerado é a terceira principal atividade econômica exercida pelas brasileiras, empregando 63,4% de mulheres negras (RASEAM 2015), entre as quais apenas 32,3% (Pnad 2015) possuem carteira assinada.

Em 2018, mantido o cenário de crise e em meio à proliferação de notícias falsas através de financiamento internacional, a extrema direita chegou ao governo federal disposta a implementar sua agenda regressiva. Nesses primeiros seis meses de Jair Bolsonaro na presidência, cabe destacar os impactos da MP 870, que promove ataques sem precedentes a importantes políticas públicas e à proteção de direitos sociais, especialmente aos povos indígenas, com a transferência da FUNAI para o ministério da Família e Direitos Humanos (comandado por uma fundamentalista e ferrenha antifeminista) e a entrega criminosa da competência para a demarcação de terras indígenas ao Ministério do Agronegócio, controlado pelos ruralistas.

Igualmente preocupantes são as mudanças legais, o “pacote antipobre e antinegro”, e igualmente misógino, propostas pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, que visam ampliar o Estado Penal e restringir ainda mais as garantias constitucionais; absurdos como a ampliação do mecanismo conhecido como “excludente de ilicitude”, além da permissão para anular crimes quando motivados por “forte emoção” (uma reedição dos crimes de honra ou passionais) ou cometidos em defesa da propriedade. Seguem na ordem do dia, a denúncia do genocídio da população negra e periférica, e a luta por uma vida livre de violência para todas as mulheres!

Para os partidos tradicionais do sistema, para o mercado e para a equipe econômica do governo a batalha central, no entanto, segue sendo a Reforma da Previdência. A proposta nos ataca diretamente com o aumento de 7 anos no tempo mínimo de contribuição previdenciária, a diminuição da diferença entre os tempos mínimos de homens e mulheres (fruto do reconhecimento das 7,5 horas semanais de trabalho doméstico não remunerado que as brasileiras cumprem a mais que os homens nos lares) e alteração no regime de categorias amplamente femininas, como a docência e as trabalhadoras rurais. As alterações no tempo de contribuição mínimo e no valor das aposentadorias têm grande impacto sobre as mulheres, seja porque a responsabilização quase exclusiva pelas tarefas domésticas as impelem à informalidade, seja porque a transfobia e marginalização social, no caso das mulheres trans, as alijam do mercado formal de trabalho e lhes ceifam prematuramente as vidas. Permanecem intocados, contudo, os privilégios de militares e da alta cúpula do Judiciário, e mais grave: introduz o sistema de capitalização, que cria um enorme mercado para exploração dos bancos e cria as condições para a completa extinção da previdência pública. O enfrentamento à Reforma da Previdência foi um dos eixos dos atos de 8 de Março em todo o país em razão de sua perversidade contra a vida das mulheres, mas também porque compreendemos que barrá-la é tarefa fundamental para inviabilizar as investidas regressivas e autoritárias de Bolsonaro e sua trupe não só na área econômica, conquistando assim uma correlação de forças mais favorável.

A desconfiança da maioria do povo brasileiro em relação à proposta da Reforma abre espaço para combatermos as mentiras disseminadas pelo governo, pela mídia monopolista e pelos agentes do mercado. Por isso iniciativas unitárias e amplas como a mobilização do dia 22 de abril e a convocação da Greve Geral para 14 de junho cumpriram um papel central na tática da oposição. Também foram muito importantes as respostas imediatas dadas pelo movimento diante do anúncio dos cortes de 30% nos recursos de custeio das universidades públicas por parte do Ministério da Educação, bem como o corte para os investimentos em Ciência e Tecnologia. As mobilizações convocadas pelos sindicatos da área educacional para os últimos dias 15 e 30 de maio, inicialmente centradas no combate à reforma da previdência, ganharam um componente novo com a ofensiva do governo contra as universidades e a educação como um todo. O. A entrada em cena dos estudantes teve um enorme impacto na opinião pública e transformou os atos de rua nas maiores manifestações desde o #EleNão, em novembro passado. A cobertura em tempo real dos meios de comunicação de massas fez com que os atos transbordassem os setores sociais vinculados à esquerda, sem que essa tenha perdido protagonismo. Os 15M e 30M marcam um importante avanço na busca por um reequilíbrio de forças na sociedade e aprofunda ainda mais a crise do governo.

Vemos, assim, que mesmo em meio à maior reação conservadora desde a ditadura empresarial-militar, a defesa dos direitos pode mobilizar multidões, em um contexto no qual os movimentos de mulheres se caracterizam como uma das mais potentes forças políticas da conjuntura brasileira. Vivemos uma inegável “explosão feminista”, para aproveitar a feliz expressão cunhada por Heloísa Buarque de Hollanda para caracterizar esta nova onda de manifestações de rua feministas, mas também de novos paradigmas ideológicos e relacionais que começam a se desenvolver ─ não sem embates com setores conservadores – sejam eles claramente misóginos, sejam de mulheres anti-feministas ou “feministas de direita”; ou como assédio do mercado para capturar nossas pautas e desarticular as lutas em reivindicações fragmentadas e de tendência individualista.

Um dos marcos desse protagonismo das mulheres ainda em curso (e em disputa!) foi 2015, quando uma primavera feminista se ergueu contra o PL 50/69, de Eduardo Cunha, que impedia o atendimento integral e de urgência a mulheres vítimas de violência sexual. Foi esta ainda a primeira manifestação massiva contra o gangster que dirigia o Congresso Nacional e mais tarde conduziria o Impeachment de Dilma Rousseff. No mesmo ano, em novembro, a primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras levou mais de 50 mil pessoas a Brasília, na luta feminista antirracista. Durante a Marcha, presenciamos um dos primeiros episódios da escalada de ódio e violência política em curso, quando um homem de extrema-direita atirou contra as manifestantes.

Mas a intimidação não nos fez recuar! No Brasil e no mundo, os movimentos de mulheres se tornaram uma força de massa, cenário no qual se destacam inicialmente o movimento Ni Una a Menos, contra a violência sexista e o feminicídio, e a greve de mulheres que parou a Polônia pela legalização do aborto, além da Greve Internacional de Mulheres, convocada por Angela Davis e Nancy Fraser pela primeira vez para aquele 8 de março… Acompanhamos uma “marea verde” (maré verde) pela descriminalização das mulheres e pela legalização do aborto tingir as ruas de Buenos Aires, depois do Chile, inspirando o Festival pela Vida das Mulheres, a campanha #NemPresaNemMorta e as mobilizações em torno da ADPF 442, redigida em parceria do PSOL com a Anis – Instituto de bioética, defendendo a descriminalização do aborto no Brasil.

A repressão ocorrida na Marcha Nacional das Mulheres Negras não foi, contudo, a última tentativa de calar nossas vozes contestadoras e libertárias. A vida de Marielle não foi interrompida por coincidência. Sua presença na Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro encarnava um projeto de poder popular que sintetizava a luta das mulheres, mães, LBGTs, pretas e faveladas a luta dos “de baixo”. Marielle encampou um projeto político que representava a maioria da população brasileira, entendendo que a lógica da representação democrática deve, necessariamente, contemplar esses corpos, essas vidas e essas lutas numa perspectiva de subversão de suas estruturas e instituições. Sua execução marca o que o feminismo negro tem demarcado como a matabilidade dos corpos negros, e sua ausência de valor humano e político nos marcos da sociedade de classes. Passado mais de um ano da bárbara execução da vereadora do PSOL, Marielle Franco, resta ecoando a pergunta: quem mandou matar Marielle? E mais incisivamente: quem encomendou ao vizinho miliciano do presidente da república o assassinato de Marielle Franco?

Portanto, temos tarefas importantes no período. Uma de nossas tarefas prioritárias, enquanto Setorial Nacional de Mulheres do PSOL, é impedir que a memória de Marielle Franco seja apagada da história, tampouco que seja instrumentalizada por um programa neoliberal que, mesmo que se proclame interseccional, não questione os limites do mercado. Outra tarefa é atuar ativamente nessas articulações e movimentos de resistência e luta, investimento no debate e na elaboração política, produzindo material, mobilizando e orientando a intervenção das mulheres do partido nesses processos.

II. O Partido-Movimento: aliança do PSOL junto aos movimentos sociais

Os desafios da conjuntura são imensos e os obstáculos se erguem em todas os matizes ideológicos do movimento. De nossa parte, cabe a tarefa imensa de maximizar a unidade em frentes amplas de movimentos e, também, nas organizações. O processo de reorganização interna que vem se desenvolvendo no PSOL, reiterando a Aliança do partido com os movimentos sociais, fruto de uma consolidação de longa jornada, em unidade com movimentos como MTST e APIB, reestrutura o PSOL enquanto partido-movimento, o que não só oferece uma ferramenta mais potente para que o PSOL cumpra com a grande tarefa de organização aglutinadora de um processo dado de reorganização de uma esquerda pós-PT, como também areja sua dinâmica interna de modo a tornar-se ainda mais viável para a ser, de fato, uma nova alternativa à esquerda, sem ceder a engodos e estratégias liberais.

Para nós, essa reestruturação é fundamental para aglutinar outros setores em torno de um projeto popular de feminismo, que nos parece dever ser o recorte central da linha política desta Setorial de Mulheres, que seja vanguarda na proposta de uma nova organização de mulheres na política e nas ruas. A Aliança que se consolida em 2019 no PSOL, será uma ótima oportunidade de nos formarmos enquanto polo de feminismo socialista, que disputará no próximo período as referências das mulheres que estão na luta, contra vertentes liberais, mas sobretudo dispute a simpatia das mulheres do povo contra o antifeminismo.

A ação da Setorial de Mulheres é fundamental para travar um debate estratégico no seio da esquerda brasileira. Não é incomum ouvirmos em diferentes espaços e em tom geralmente pejorativo a afirmação de que a luta das mulheres é uma questão meramente identitária. Em primeiro lugar, nos cabe afirmar que subjetividades são sim importantes, embora parte da esquerda, por hábito, as negligencie. Nesse sentido, as identidades fazem parte de nossa constituição. Mas afirmamos que o que tem levado as mulheres à luta é, antes de mais nada, uma reação à estrutura da desigualdade de gênero que se impõe sobre nós e que só se agrava com a expansão e consolidação do neoliberalismo.

Esta imposição é propiciada por uma combinação de divisão social, racial e sexual do trabalho que faz com que as mulheres sejam a maioria das pessoas pobres do mundo. E que faz com que a pobreza atinja de maneira muito mais direta as mulheres não brancas. Para nos atermos apenas à divisão sexual do trabalho, esta é, como aponta Danièle Kergoat, modelada histórica e socialmente e se baseia em dois princípios: 1) o princípio da separação (há trabalhos de homens e trabalhos de mulheres); 2) e o princípio da hierarquia (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher). Dessa maneira, os homens ocupam majoritariamente funções com forte valor social agregado, como a política e a direção das igrejas e das forças armadas, bem como os cargos de direção nos governos e empresas  das esferas públicas e privadas, enquanto as mulheres são responsáveis pela realização dos trabalhos doméstico, de procriação, psicológico/de cuidado e sexual, acumulando o trabalho produtivo e o reprodutivo.

Evidente que a opressão das mulheres remonta a tempos anteriores ao surgimento do sistema capitalista. Contudo, com ele é engendrada a forma particular com que essa opressão apresenta nos nossos dias. A desigualdade de gênero tem sua raiz no lugar diferenciado que as mulheres ocupam dentro da reprodução social capitalista. Do trabalho doméstico e de cuidados não remunerados, desempenhados majoritariamente pelas mulheres depende a reprodução da sociedade, seja na perspectiva a) da reprodução da espécie (portanto, da renovação força de trabalho e, também, no caso da burguesia, da transmissão da propriedade); b) da manutenção da força de trabalho existente (alimentação, higiene etc.); c) manutenção dos membros que não trabalham (idosos, pessoas com deficiência, doentes, crianças etc.) das classes trabalhadoras. Trata-se de uma porção do trabalho necessário, portanto essencial à manutenção da vida humana que é realizada fora da esfera da produção capitalista e, por suas funções, é denominado trabalho reprodutivo. Se, por um lado, sob o modo de produção capitalista, a demarcação entre trabalho excedente e o componente social trabalho necessário é ofuscada no pagamento dos salários, por outro, o componente doméstico do trabalho necessário é dissociado do trabalho assalariado.

Na ausência de mecanismos para retirar, ao menos em parte, estas atividades do espaço privado, como restaurantes e lavanderias públicas, acesso à educação infantil de qualidade, dentre outras, e de divisão dessas tarefas entre todos na casa, essas recaem sobre os ombros das mulheres. Das próprias ou de outras, o que no Brasil é fortemente recortado por raça, uma vez que as mulheres com mais renda, na maioria brancas, terceirizam parte destas tarefas a mulheres de baixa renda, na maioria negras. O trabalho doméstico remunerado é uma das principais ocupações das brasileiras, empregando 17% das mulheres. 13% das trabalhadoras domésticas de todo o mundo encontram-se no Brasil, um dos 10 maiores pesos do índice que mede a inflação. Não à toa, vemos por que a PEC das Domésticas ficou quase duas décadas em tramitação no Congresso Nacional e só foi aprovada no mesmo ano em que a reforma trabalhista flexibilizava as relações de trabalho. Como nos explica Lélia González, as empregadas domésticas, babás e cuidadoras são as “mucamas permitidas”, dando prosseguimento a uma relação de dominação-exploração que tem início com a escravidão.

 A reivindicação de um feminismo popular não se liga apenas ao fato de que são as mulheres do “andar de baixo”, que pretendemos organizar. Está ligada, sobretudo, à compreensão do caráter estrutural da opressão machista e racista na conformação e reprodução da sociabilidade capitalista, e que, portanto, tem nas mulheres trabalhadoras as agentes de sua destruição. Aqui cabe mencionar nossa compreensão da noção de “interseccionalidade”, não como uma hierarquia entre opressões, mas como um olhar que se volta à particularidade da exploração de classe sobre as mulheres, e das vivências dessa pelas mulheres negras, lésbicas, bissexuais, trans, indígenas, migrantes… qualificando formas particulares como a exploração sobre os sujeitos concretos se dá, de forma que seja possível apontar para a construção de alternativas sistêmicas reais a esse estado de coisas. Isso significa ainda que o debate feminista deve ocupar lugar destacado nas formulações de todo o partido, pois a emancipação das mulheres, em sua pluralidade, diz respeito à luta de todo o gênero humano por um mundo socialista e libertário.

III. Perspectivas táticas na reorganização da esquerda e movimento feminista no Brasil

Nesse fluxo da conjuntura recente, o movimento #EleNão apresenta perspectivas de análises muito profícuas para o movimento de mulheres no Brasil. Num ano em que a tônica eleitoral foi delineada a partir de um neo-macartismo empregado pelo então candidato Bolsonaro, a única movimentação de contestação e freio no resultado das urnas foi o Ele Não. Pode-se afirmar que os movimentos de rua pelo #EleNão impediram a vitória de Bolsonaro no primeiro turno. Contudo, dentro de um cenário mais amplo de mudanças empreendidas pela sociabilidade na era digital, é necessário sinalizar e compreender criticamente duas complicações e problemáticas de como o feminismo vem se imprimindo no conjunto da sociedade brasileira: (i) a dificuldade em explorar no movimento, pautas que superem o imediatismo da agenda política posta numa linha do tempo que só comporta o hoje, e (ii) a dificuldade em construir, com referência à esquerda socialista, quadros e figuras públicas femininas e feministas que estejam aptas a disputar, nos movimentos e nas formulações, um feminismo que aponte a importância da crítica estrutural do sistema político e econômico e organize as as mulheres em torno dum projeto de superação da ordem capitalista.

Na tônica residual do #EleNão, o feminismo liberal das pautas imediatas e do direito e garantia das liberdades individuais tem se fixado, naturalmente, nos espaços comuns da reprodução e controle do discurso que orienta a luta contra a opressão. Ideologicamente, isso é uma derrota. Historicamente, um quadro conjuntural em disputa. A ampliação de nossa bancada federal, por exemplo, tem nos credenciado para debater o feminismo com a população, embora esse debate precise ganhar contornos da luta de classes, explorando aspectos anticapitalistas de maior fôlego, e não meramente imediatistas. Ademais a avaliação positiva de que historicamente o feminismo nunca foi tão popular, nos atrasa enquanto organização socialista.

Na outra ponta, o governo eleito destaca o anti-feminismo para se incorporar ao seu arsenal de espantalhos populistas. O conservadorismo que tem sido identificado como a coluna vertebral do programa de governo de Bolsonaro deu voz a figuras retrógradas e misóginas, muitas das quais formadas e indicadas pelo ideólogo da dita alt-right (“direita alternativa”) Olavo de Carvalho, ou por ícones da bancada evangélica, como Damares Alves. A rejeição desse setor da sociedade ao feminismo e sua tônica liberal tem garantido a emergência de um outro movimento de mulheres que reivindica a estrutura patriarcal, a submissão feminina no campo dos costumes, uma ideia difusa de “feminilidade” e a agenda econômica do mercado. O “feminismo” de direita, ou anti-feminismo, é um fenômeno reativo à crescente onda feminista, passível de se estabelecer (pensemos no que foi o chamado “backlash” nos Estados Unidos). Em certa medida, os tensionamentos que vivemos com as vertentes liberais no movimento de mulheres serão resolvidos por, além do debate estratégico, uma recomposição social do movimento feminista.

Diante de tal cenário, parece essencial o investimento na disputa cultural das consciências, descentralizando a aplicação e exercício de nossas táticas de ampliação no movimento de mulheres, disputando uma concepção feminista anticapitalista e radicalmente popular. Para tal disputa, diante dos movimentos de massas, é fundamental que nosso investimento militante se dê em duas vias: (i) na construção real e cotidiana dos vínculos de confiança e camaradagem nos territórios e movimentos nos quais atuamos ou venhamos a atuar, e (ii) campanhas de comunicação eficientes e estruturadas, compreendendo que, no tempo que nos é dado, as redes e mídias são território de ampla disputa e formação política.

O recém eleito presidente da República Jair Bolsonaro (PSL) associou por inúmeras vezes durante sua campanha eleitoral a narrativa religiosa fundamentalista da disputa política. Seu slogan político/religioso ​“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” demonstra que o discurso teológico hegemônico ganhou – mais uma vez – centralidade no debate eleitoral brasileiro. Ao colocar uma pastora como Ministra de uma das pastas mais importantes para a vida das mulheres, Bolsonaro cela seu projeto teocrático de dominação, aprofundando um projeto altamente fundamentalista, se aliando com o que há de pior dentro das igrejas: as hierarquias em nome de um deus do mercado.

Um dos nossos desafios enquanto mulheres que se propõem a pensar um projeto popular de feminismo, é encarar as contradições e limitações pela qual o movimento feminista tratou até o presente a questão das religiões para as mulheres brasileiras. Há uma clara invisibilidade das mulheres religiosas nos debates do feminismo, principalmente quando tratamos dos direitos sexuais e reprodutivos. Algo totalmente contraditório do ponto de vista da realidade, já que segundo a pesquisa divulgada pela ANIS Bioética em 2016, 88% das mulheres que recorreram a procedimento de interrupção da gravidez tem religião. Destas, 56% são mulheres católicas, 25% são evangélicas.

Há de se incorporar métodos de convencimento oriundas da teologia feminista latinoamericana para que possamos convencer essas mulheres e ir até elas, ocupando os salões das igrejas e derrotando o neopentecostalismo. O fundamentalismo que adota a religião como estratégia, coloca em xeque o direito das mulheres através de uma culpabilização religiosa. Colocam nosso corpo como centro da política religiosa. Nossos direitos sexuais e reprodutivos são sempre ameaçados por discursos religiosos violentos. Essa culpabilização religiosa tem a função de dominar as mulheres e age legitimando uma narrativa teológica sobre Deus como um “gerenciador das posturas sobre as mulheres”.

Outro ponto crucial ao falarmos de religião e gênero é reconhecer o papel fundamental das mães de santo, das benzedeiras, que seguem fazendo resistências nos quilombos urbanos das nossas Cidades: os terreiros. É imprescindível que nosso feminismo denuncie o cristofascimo que persegue os terreiros, e que age legitimando posturas religiosas racistas com a função de dominar e de continuar colonizando. É preciso florescer um feminismo popular que dê incorpore as religiosidades de matrizes africanas como pontos da nossa subjetividade, de reconhecimento à resistência e valorização da nossa história, resgatando nossa potência sagrada através da ancestralidade. Axé!

As demonstrações recentes do movimento feminista, das universidade e dos movimentos sociais de ouvirem e convidarem mais as religiosas para os espaços de discussão política, só constata que é impossível alcançar um novo mundo, com justiça social e igualdade de gênero, sem que se faça a devida interseccionalidade religiosa. Afinal, grande parte das mulheres deste Brasil são religiosas e se souberem que é possível sim conciliar religião e direito aos próprios corpos podem, juntas, destruir os impérios romanos e as colônias que impediram as mulheres por tanto tempo de avançarem mais.

Numa perspectiva de expansão e popularização do movimento, é fundamental que trazer à luz de nossa construção pautas como a das mulheres com deficiência. Estas que estão sujeitas à múltiplas discriminações, embora, sejam vítimas das mesmas formas de violência cometidas contra as demais mulheres, algumas formas de violência específica não têm sido vistas como violência baseada no gênero; isto por causa da intensa discriminação baseada na deficiência. A incidência de maus-tratos, abuso sexual, abuso econômico contra estas mulheres quase sempre acontecem por pessoas da família e ou convívio excede de longe aquela que atinge mulheres sem deficiência.

Além disso, os dados disponíveis, e ainda escassos, também mostram que o índice de violência contra mulheres com deficiência é mais alto do que contra homens com deficiência. Em casos de violência sexual, a mulher com deficiência têm menos alternativa para fugir do abuso, levando em conta a sua condição física, intelectual e mental, e de comunicação acessível para fazer a denúncia. Essa violência compartilha características comuns com a violência contra todas mulheres, mas também possui dimensões singulares. A violência contra mulheres com deficiência é quase sempre um ato que é perpetrado contra o que é percebido pelos seus agressores como “um ser defeituoso” e é uma demonstração de um ato socialmente aceitável de ter o poder e o controle sobre o corpo e a mente da mulher.

É importante fazer um destaque as mães de ou responsáveis pelas  pessoas com deficiência, que na maioria das vezes são mulheres, denunciar o descaso e a invisibilidade sofrida por elas, quase todas sozinhas, que cria sozinha o filho em razão do abandono do pai, que são sobrecarregadas na tarefa,  principalmente se filho necessitar de cuidados específicos ou até mesmo na rotina de consultas, exames, tratamentos e escola. Isso faz com que elas deixem seus empregos e comecem a fazer trabalhos autônomos, informais, que são afetadas não apenas no lado profissional, mas também nos relacionamentos social e afetivos causando para elas o isolamento, o medo e a vergonha de expor a pessoa que é cuidada por ela.

Contudo, se por um lado, na nossa contribuição junto aos movimentos de mulheres, sobretudo os não-organizados ou de influências autonomistas, é fundamental o cultivo das frentes amplas e o investimento em uma comunicação formadora e politizada, é de importância igualmente fundamental que nos dediquemos com uma energia viva às mulheres camaradas do PSOL. A função central desta Setorial Nacional de Mulheres é que ela seja capaz de imprimir uma política consequente dentro e fora do partido.

Por isso, é urgente priorizarmos a formação de nossas mulheres, construindo assim uma organização fortalecida em termos de consistência política. É urgente que sejamos plurais em quadros dirigentes, formuladoras, figuras públicas e que nossas elaborações e contribuições políticas deem vida e corpo ao partido, assumindo a responsabilidade de uma práxis verdadeiramente feminista.

IV. Confirmar laços e projetar novos futuros

Desde a fundação do PSOL, a auto-organização das mulheres tem cumprido papel fundamental. Devemos à nossa articulação feminista a posição partidária em defesa da legalização do aborto e da garantia de direitos sexuais e reprodutivos amplos para as mulheres, além da paridade de gênero alcançada no Diretório e Executiva Nacional. Contudo, restam ainda muitos desafios, como a própria implementação da paridade (além das cotas para negras e negros, aprovadas no último congresso partidário) em todos os níveis de instâncias partidárias. Mas talvez o mais importante desafio que se impõe a nós seja o de estabelecer uma dinâmica de funcionamento da Setorial de Mulheres que alimente a auto-organização local, nos bairros, nos municípios e estados, com materiais de formação e campanhas de mobilização perenes. 

Em 2015, o III Encontro Nacional de Mulheres do PSOL não ocorreu de forma unificada. Este novo processo de encontro que se abre em 2019 marca a conclusão de um longo esforço de repactuação, superando as divergências e o trauma compartilhado. Queremos aqui reivindicar esse esforço coletivo, de vários setores partidários, que desde a primeira hora, diante da conjuntura de fortes mobilizações de mulheres que se impunha, apostaram na costura de laços, sem escamotear as diferenças.

Não foi solitariamente que a Setorial Nacional de Mulheres construiu atividades de formação nas cinco regiões do país entre 2015 e 2017, mas com apoio das setoriais e direções locais, como a marcante atividade na sede Associação dos Moradores do Bairro do Bengui, na periferia de Belém. A cartilha 50 Propostas Feministas para a Cidade, por exemplo, distribuída a candidatas e candidatos do PSOL em todo o país, foi lançada em São Paulo, em parceria com a setorial estadual e a presença de nossa deputada federal Luiza Erundina. Editamos, em parceria com a FLC (hoje, Fundação Lauro Campos e Marielle Franco), o livro Libertando a vida: a revolução das mulheres, com a presença de uma companheira do Movimento Mulheres do Curdistão. Também com a Fundação lançamos um número da revista Socialismo e Liberdade, em março de 2016, escrito somente por mulheres, com debates sobre a conjuntura numa perspectiva feminista, como o realizado em parceria com o Diretório Estadual do PSOL Paraná.

Mas o nosso passo maior, além das atividades unitárias locais foi a apresentação, em parceria com a Anis, da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 ao STF, advogando a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, avançando um passo para a legalização do aborto no Brasil. Simultaneamente, investimos na articulação das 11 vereadoras eleitas pelo PSOL em 2016, conformando uma Bancada Feminista para nacionalizar e fortalecer as disputas nas câmaras municipais. O processo deu um excelente resultado, como vimos com a ampliação de nossa bancada de deputadas feministas estaduais e federais. O PSOL pode se orgulhar de ter hoje uma bancada federal combativa e paritária. Investir no fortalecimento da relação entre Setorial e Bancada é uma tarefa da nova setorial que será eleita por este Encontro de Mulheres. 

O processo de repactuação que vem se consolidando no calor das lutas aponta para a urgência de novas sínteses para a esquerda. O momento nos exigiu e ainda exige ampla unidade de ação contra a agenda regressiva do pós-golpe, mas para além disso, um programa que dê soluções concretas para a vida das trabalhadoras e trabalhadores, relançando uma estratégia de enfrentamento e acúmulo de forças, contra a falida lógica de conciliação de classes, incorporando uma estratégia e uma prática feministas.

V. Perfil e funcionamento

A crise econômica mundial colocou em xeque as formas tradicionais de representação política. As social democracias não conseguiram dar as respostas necessárias para a reorganização econômica mundial, em que as políticas de austeridade levaram milhões à miséria, colocou também as democracias liberais em crise. Aqui no Brasil esse processo ganhou contornos especiais com o golpe de 2016, cujo objetivo central era implementar medidas que aprofundassem a exploração capital-trabalho. Em nosso país, a crise de representatividade e a aposta em saídas anti sistêmicas, aliada à forte crise econômica, foram alguns dos fatores que impulsionaram a eleição de Jair Bolsonaro e da extrema-direita nas últimas eleições. Por outro lado, a crise das democracias liberais também passa pela construção de uma nova esquerda, que possua novas formas de organização, de ativismos e que impulsionem agendas, como a antirracista e a feminista. 

O movimento de mulheres é uma expressão disso, hoje a mobilização das mulheres passa também por movimentos e coletivos mais difusos e amplos, e não somente pela atuação de uma vanguarda. Um deles foi o movimento #EleNão, que levou milhares de mulheres às ruas, mas a polarização política também impulsionou o antifeminismo, cuja principal expressão é a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. A batalha ideológica travada por esse setor tem como objetivo retroceder tanto nos direitos sociais conquistados pelas mulheres nos últimos anos, como na legislação em torno dos direitos sexuais e reprodutivos, bem como regredir em relação ao papel social das mulheres na sociedade, buscando enquadrar as mulheres dentro do perfil “bela, recatada e do lar”. 

Para refletir sobre quem são as mulheres brasileiras e de que forma elas podem ser mobilizadas para a luta com horizonte socialista, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que só é possível falar nesse sujeito político no plural. As mulheres são muitas, com diferentes histórias de vida e atravessadas de maneiras distintas pelas opressões de gênero, raciais e de classe. Mobilizar-se na luta feminista significa, hoje, compreender a complexidade do terreno onde acontecem as batalhas e saber quais bandeiras têm sido prioritárias para levar as mulheres às ruas e à organização política.

A Setorial de Mulheres do PSOL deve cumprir a tarefa de armar as mulheres do nosso partido para o enfrentamento ao conservadorismo e ao liberalismo. A setorial também deve fazer política para além da dinâmica interna do PSOL. Achamos fundamental que a setorial consiga cumprir o papel de organizar tanto as mulheres filiadas, quanto as que têm algum grau de referência no partido, que dialogue tanto com as organizações de mulheres, quanto para as novas ativistas. A setorial deve estar a serviço de organizar a luta feminista no Brasil e que esteja conectada com as questões urgentes das mulheres trabalhadoras, cumprindo o desafio de organizar as mulheres em um partido de massas, com atuação política dentro e fora do partido e cumprir o papel de acumular forças para libertação das mulheres brasileiras.

Precisamos construir uma setorial que formule política de mulheres para o partido, que realize campanhas e formação política, que tenha uma política de comunicação tanto pra dentro quanto pra fora do partido, que seja articulada com os mandatos feministas do PSOL e que atue para o processo de formação e fortalecimento da setorial nos estados. É importante também que a setorial incentive e fortaleça candidaturas feministas para 2020 e se debruce sobre a construção de bases programáticas comuns para a construção de um programa feminista para as cidades nas próximas eleições. Precisamos ainda cuidar umas das outras. Militantes feministas ligadas à pauta da legalização do aborto e contra a exploração sexual de crianças e de mulheres estão sendo forçadas a deixar o país para preservar suas vidas. Nossas parlamentares também sofrem ameaças físicas e perseguições políticas sistematicamente. É fundamental fazer valer o lema “ninguém solta a mão de ninguém”.

A Setorial de Mulheres do PSOL deve refletir e expressar as diferentes posições políticas das mulheres do partido. Então, defendemos que a setorial seja composta por uma direção eleita, de forma proporcional qualificada direta e, considerando a centralidade das mulheres negras e indígenas na luta feminista, defendemos que a direção seja composta, no mínimo, por metade de não brancas.

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